Desde a criação do Fórum Social Mundial em 2001, nele se desenvolve um debate recorrente sobre seu caráter: é ele um espaço ou um movimento? Esse debate não é colocado nesses termos mas, por detrás das proposições sobre sua organização, são essas duas concepções que dividem as pessoas, nas atividades de discussão sobre o futuro do FSM, já tradicionais nos Fóruns. Em especial quando se discute o papel de seu Conselho Internacional.
O debate reemerge sistematicamente a cada vez que se organiza um FSM, e mais intensamente quando se discute o modo de encerrá-lo. Os que o concebem como movimento consideram que deve terminar “aterrissando” em mobilizações concretas, com um documento final único “do” FSM, que as convoque; para aqueles que o veem como um espaço ele deve ao final “decolar”, com muitos e diversificados documentos finais que traduzam reais engajamentos dos que os subscrevam.
Uma nova argumentação obviamente correta vem surgindo nesse debate, apresentada pelos defensores do FSM-movimento: o mundo mudou muito nesses 15 anos de vida do Fórum, o que o obriga também a mudar. Questiona-se igualmente a metodologia usada, se organizado somente como “espaço”, considerando-se que vem diminuindo o número de participantes a partir de 2011.
Os defensores do FSM-espaço - entre os quais me situo - respondem dizendo que muita mudança já vem sendo feita em cada Fórum que se realiza. Até porque hoje eles reúnem, por obra talvez do próprio processo do FSM, muito mais redes de movimentos do que movimentos isolados. E já estamos começando a usar os modernos meios de intercomunicação virtual, conseguindo assim que a participação não se restrinja aqueles que podem viajar.
A meu ver há e haverá sempre muito a melhorar no modo de organizar os Fóruns, adequando-os à realidade do mundo e às experiências dos movimentos sociais, mas não devemos de forma alguma mudar seu caráter de “espaço”, para não jogarmos fora o bebê com a agua do banho. Aliás esse seu caráter parece ser o que mais se consolidou nestes 15 anos – ainda que ao custo de realizar eventos menos gloriosos quanto ao número de participantes.
Na verdade, com o sucesso de suas primeiras edições, muitos jornalistas o chamavam de “movimento dos movimentos”. E até o FSM de Belém, no Brasil, em 2009, com seus 150.000 participantes, ele parecia ter toda essa força, reunindo representantes dos que desafiam o 1% que domina o mundo (na fórmula usada pelos occupy de Nova York), cujas lideranças se encontram anualmente no Fórum Econômico Mundial de Davos.
O esforço necessário para realizar os FSM sem dispor de uma entidade organizadora permanente ou de uma empresa, nem de muitos recursos – como é o caso do FEM de Davos - levou no entanto seu Conselho Internacional, criado depois do primeiro FSM, a decidir que ele passasse a ser realizado, a partir de 2007, somente a cada dois anos. Em seguida abandonou-se em 2011, em Dakar, a opção de realiza-los na mesma data de Davos, sua estratégia inicial para aparecer na grande mídia como a “alternativa” ao que se expressa em Davos. O processo de flexibilização continuou e agora o FSM de 2016, em Montreal - o primeiro no hemisfério norte – vai se realizar em agosto.
Mas enquanto isso o neoliberalismo acumulou vitorias, após a queda do Muro de Berlim, consolidando a dominação do mundo pelo sistema econômico, político e militar capitalista. Ele hoje domina “corações e mentes” pelo mundo afora. Além da mentalidade consumista que se espraiou por toda a Terra, para ajudar a escoar e retransformar em dinheiro sua crescente produção “globalizada”, ele submete também os líderes políticos ditos “progressistas”. Para “entregar serviços ao povo” – como infelizmente muitos acham que é sua função principal – eles não conseguem se libertar da lógica do crescimento econômico a qualquer custo, inclusive com a destruição da natureza. Consumismo e opção pelo crescimento econômico constituem hoje de fato um tipo moderno de “submissão voluntária.”
A preocupação com a eficácia
Essa constatação um pouco frustrante provoca, em velhos e novos companheiros de caminhada, o sentimento de que o FSM (e portanto o CI como se ele fosse o “Comitê Político Central” do FSM) precisa ser mais eficaz na luta pela superação do neoliberalismo, seu objetivo declarado. E é por isso que, segundo eles, ele tem que ser um “movimento” e tornar-se um “ator” político relevante, como buscam ser todos os movimentos: isso o faria agora reaparecer na grande mídia e no imaginário dos povos como esperança de um “outro mundo possível” (embora se possa dizer que esta frase, marca do FSM desde sua primeira edição, já tenha feito um belo caminho nesse imaginário, pelo que se pode deduzir do fato dela ter sido usada no final do discurso do ganhador da Palma de Ouro do Festival de Cinema de Cannes de 2016).
Ou seja, como ele em verdade reúne muitos movimentos, isto corresponderia a assumi-lo efetivamente como um “movimento dos movimentos”, realmente capaz de dar o embate necessário e urgente contra o capitalismo. Mas os defensores do FSM-espaço temem que isso não leve senão à construção de uma pirâmide de poder hierárquico, situado acima dos outros movimentos, que acabará se tornando uma cúpula distanciada da base e da realidade. E na prática quem ou que movimento poderá se arvorar em conduzir todos os movimentos anticapitalistas que existem? Acho que nem mesmo nosso simpático atual Papa argentino... O que precisamos é que os movimentos existentes ganhem mais força se articulando entre si – já que eles é que construirão (ou já o estão construindo), na sua diversidade, o “outro mundo possível”.
De qualquer maneira, acredito que não podemos perder pequenas mas essenciais caraterísticas de funcionamento do FSM tal como o temos agora porque, na minha opinião, foram elas que permitiram que já estejamos comemorando nossos 15 anos. Parece estar se tornando consensual que o abandono da concomitância de datas com Davos foi um engano. Mas se desse engano ainda poderemos nos recuperar, o abandono de alguns outros princípios seria mais grave (e poderia ser fatal...); como o de decidir por consenso no Conselho Internacional, desde que apoiado na corresponsabilidade solidária e não na dominação do mais forte. Essa maneira de ver a busca de consenso, frente às divergências que sempre existirão, coloca a construção da unidade, na diversidade, como valor maior a ser absolutamente preservado.
Na verdade 15 anos é muito pouco tempo para a realização de uma das pretensões do FSM: contribuir para a superação de uma cultura política vanguardista que há bem mais de um século domina a esquerda, rumo a um novo tipo de ação política que incorpore conceitos como o de horizontalidade e de rede. Ao pretendermos substituir ou coordenar os movimentos e partidos que estão lutando para mudar o mundo (nossa Carta de Princípios já procura nos prevenir dessa tentação), perderemos o instrumento que temos em nossas mãos para reuni-los e ajuda-los a se articularem. Poderemos então nos tornar mais um exemplo histórico de tentativas frustradas de enfrentamento do monstro poderoso do capitalismo, que se estiolaram porque seus atores se fragmentaram em lutas por hegemonia dentro de seu próprio campo.
Repetir muitas vezes os mesmos argumentos chega a cansar quem os ouve, mas também quem os expõe. Foi por isso que, na assembleia de preparação do FSM 2016 em Montreal em abril deste ano, quando se discutia exatamente como “finalizar” esse Fórum, ousei formular uma metáfora para caracterizar o que é o processo do FSM. Pretendi coloca-la por escrito ainda durante o encontro, mas não consegui terminar. Eu o completei agora, com um texto mais longo do que eu pretendia, que enviarei aos amigos canadenses.
Mas ao elaborá-la, me veio uma pergunta: no nosso confronto com o capitalismo, não seria o caso de assumirmos claramente a estratégia da guerrilha, não-violenta (que não cria o terror nem mata as pessoas mas as ganha para nossa luta), e, obviamente, sem armas (o que também não cria a dependência de seus fabricantes e mercadores nem aumenta sua fortuna)?
A grande diferença dessa estratégia daquela do enfrentamento frontal – no qual o sistema sempre virá com toda a sua força militar - é que ela multiplica ao infinito as frentes de luta, exatamente como é preciso dada a enorme diversidade de ações que são necessárias para a efetiva libertação das “mentes e corações” de todos que são cooptados, enganados e explorados pelo sistema que domina o mundo. A ação que usa essa estratégia incide sobre a ossatura do inimigo onde ela estiver se fragilizando – por exemplo agora os paraísos fiscais. Mas pode também despertar a consciência dos oprimidos e dominados e criar confiança na sua capacidade de mudar o mundo. Com a qual se pode atuar como no jiu-jitsu, em que se derruba o oponente não pela força mas fazendo com que seu próprio desequilíbrio o empurre para o chão.
Em um Fórum Social nacional realizado na Alemanha, em 2007, surgiu uma proposta desse mesmo tipo: o monstro poderia ser derrubado pela ação de milhões de abelhas que o cercassem por todos os lados. A imagem não era no entanto boa porque as abelhas são kamikazes...
Mas há muitos exemplos históricos da vitória sobre monstros com essa estratégia. No próprio Quebec, onde vai se realizar o próximo FSM, conta-se que há mais de um século atrás centenas ou milhares de barquinhos de autóctones, ainda que com objetivos comerciais, fizeram recuar um grande cruzador inglês que pretendia atacar os franceses na disputa pela posse desse território nas Américas. Um episódio mais conhecido e mais recente de vitória dessa estratégia é o do Vietnam, que levou Che Guevara a sonhar com “mil Vietnams” espalhados pelo mundo. Seu insucesso ao tentar criar um novo Vietnam na Bolívia foi devida não ao uso da guerrilha mas por que para ele guerrilha era ação armada, como em Cuba e no Vietnam, e por não ter levado em conta, suficientemente, as “condições subjetivas” para o enfrentamento.
O FSM é extremamente adequado para contribuir dessa forma para o uso dessa estratégia porque um dos Princípios de sua Carta é exatamente o do respeito à diversidade de seus participantes (nas culturas, nas línguas, nas estratégias e táticas, no ritmo, nas faixas etárias, no sexo e na raça, no lugar em que cada um se encontra em sua caminhada de tomada de consciência do mundo a construir e da ação necessária para isso). O respeito à diversidade permite por outro lado que no espaço do FSM possamos nos reconhecer mutuamente e superar preconceitos que nos separam, rumo a novas alianças cuja possibilidade não víamos porque lutávamos isoladamente uns dos outros.
Ele pode ser também útil porque outro dos seus Princípios é o respeito à autonomia das pessoas e movimentos que nele se reúnem, desde a autogestão das suas atividades nos Fóruns até a desnecessidade de fazer todos “convergirem” em torno de um documento final único de cada FSM (em detrimento de “mil documentos finais” que engajem efetivamente seus signatários).
Mas adotar a estratégia da guerrilha significa optar por uma luta muito longa, com resultados além da vida de cada um, mais demorados do que os enganosos das “tomadas do poder” sem revolução cultural.
Chico Whitaker