Em 2010, 84% da população mundial se identificava à uma das cinco maiores religiões (Budismo, Cristianismo, Islamismo, Judaísmo, Hinduísmo), segundo um estudo demográfico do Pew Forum on religion & public life. Assim, é inegável que as religiões, em toda a sua diversidade, são amplamente presentes e disseminada entre as populações mundiais. Elas incluem sistemas de crenças e de práticas sociais, as vezes inclusive sistemas econômicos e políticos, que influenciam as percepções e ações dos indivíduos. Além da dimensão individual, as religiões estabelecem, de forma heterogênea, valores e comportamentos sociais. Como demonstram alguns estudos sociológicos sobre o voto eleitoral, as religiões também podem ser a fonte de decisões políticas entre os eleitores, e as crenças religiosas podem, por sua vez, se alimentar de visões e de discursos em torno de uma política. Iniciadoras de visões, de práticas e de espaços de socialização, as religiões são elementos importantes a serem considerados na análise e na gênese de todas as formas de mobilização.
Negligenciá-las ou mesmo rejeitá-las significaria excluir fatores que fazem parte das ações, assim como alienar as identidades e as visões de agentes que podem trabalhar para a emancipação dos povos, das comunidades e dos indivíduos que as compõem. Tornar essa dimensão invisível ou descreditá-la é uma forma de dominação. Uma dominação não apenas de determinadas ideologias - que se podem, por vezes, elas mesmas reivindicar aspectos religiosos ou não religiosos - sobre os outros, mas também uma dominação que se exerce no âmbito dos movimentos que reivindicam a luta pela emancipação. Essa discriminação entre e dentro dos movimentos é observada em muitos países, incluindo o famoso exemplo francês, dentro do espectro feminista, aonde se constata uma marginalização das mulheres muçulmanas que utilizam o véu por parte de feministas seculares, que consideram que essa prática religiosa é uma forma de opressão. Isso se traduz em uma tendência em considerar que existe uma única forma de ativismo e de expressão do feminismo, esquecendo a diversidade das identidades daquelas e daqueles que compõem a luta pela igualdade de gênero, e busca abafá-la. Incluir o fator religioso na análise das lutas permite não apenas destacar as formas de discriminação das quais podem ser vítimas o(a)s defensore(a)s da emancipação, mas também lembrar da diversidade dos movimentos sociais (e de seus agentes) e, finalmente, da pluralidade das formas de luta que buscam um objetivo comum: a emancipação do todo(a)s.
O grupo Religião e Emancipação1 quer destacar essa pluralidade, discutir da diversidade dos movimentos que atuam em favor da emancipação, a partir de uma perspectiva de inclusão e horizontalidade. Esse grupo procura destacar outras formas de mobilizações, frequentemente marginalizadas pelos movimentos dominantes, inspirados ou apoiados na religião para avançar em direção a um mundo mais justo e equitativo, onde todas as pessoas serão capazes de se emancipar livremente, sem distinção de raça, classe, gênero, orientação sexual ou qualquer outra classificação / hierarquia social.
A questão, no entanto, é até que ponto os movimentos socais, inspirados pela religiosidade ou não, estão dispostos a ir para aceitar a emancipação de todo(a)s. Como garantir que a visão religiosa não assuma o controle sobre uma visão de emancipação total? Sobre temas como a igualdade de gênero, a homossexualidade, o aborto, por exemplo, podemos antecipar e superar alguns desafios específicos? Por outro lado, já não existem movimentos que são inspirados pela religiosidade, ou que inclusive agem dentro da esfera religiosa, que lutam constantemente pelos direitos humanos fundamentais das pessoas, em sua totalidade? Não deveríamos, finalmente, superar essa dicotomia percebida entre religião e emancipação para entendermos como duas visões de mundo - dentre muitas outras - podem hibridar, ou seja, agir de maneira relacional e, simultaneamente, sem que uma se volte sobre a outra? Como tornar essa complexidade mais acessível para aqueles que tendem a ver as coisas de forma binária? Como constituir essa complexidade em uma riqueza?
A peculiaridade do grupo de trabalho Religião e Emancipação, um grupo multicultural, multilíngue e multirreligioso, é sua inserção em processos relacionados com o Fórum Social Mundial. Este responde às necessidades, iniciativas e questões formuladas por vários movimentos sociais reunidos nas assembleias de convergência dos FSM de 2013 e de 2015. Ele quer proporcionar um espaço para a discussão entre o(a)s agentes já envolvido(a)s em reflexões sobre o tema Religião e Emancipação, e dar continuidade aos debates para preparar a sua participação no próximo Fórum social Mundial, em Montreal.