Se a distância potencializa percepções e sentimentos, as expressões animalescas de brasileiros que esbofetearam a dor do ex-presidente Lula pela perda de sua companheira de vida têm o gosto do sal sobre a ferida aberta. De longe, diante da tela do computador, sob o impacto das ofensas difundidas com a morte de Dona Marisa, vem à memória uma imagem bíblica simbólica da crueldade humana - a dos que ofereceram vinagre a Jesus, quando agonizava com sede na cruz.
O Brasil está doente, açoitado pela discórdia, pelo desânimo, pela banalização da crueldade. Os subterrâneos das redes sociais estão infestados de bestas que afrontam impunes a nossa decência, a nossa dignidade, a nossa cidadania inacabada, a nossa construção do futuro. Visto de longe, pouco resta da imagem do Brasil além de um vasto território no mapa da América do Sul sem lei e sem moral, onde impera o cinismo e a vulgaridade mal disfarçada em mesóclises dos que nos foram impostos como governantes.
Há uma nova expressão que procura dar conta do tempo complexo e difícil em que estamos mergulhados : « democracia sobrante ». Este foi o nome da conferência internacional que na semana passada reuniu em Sevilha alguns dos melhores especialistas em direitos humanos - Capitalismo neoliberal, Democracia Sobrante. No sistema atual a que estamos submetidos, há uma fatia considerável do conjunto de valores formadores da Democracia que está sobrando, é excedente, precisa ser descartada. É aquela onde estão concentrados os direitos e garantias que vão sendo despidos de um Estado Social que nós, brasileiros, nunca chegamos a experimentar realmente.
O Brasil tornou-se hoje o grande laboratório mundial desta guerra geral do neoliberalismo à democracia « excedente ». Há uma crise estrutural do Estado, como identificou no encontro o ex-ministro da Justiça e advogado da Presidente Dilma Rouseff, José Eduardo Cardozo, que afunda na promiscuidade a separação de poderes que o fundamenta ; que abala o princípio da legalidade e põe em xeque o poder legislativo ; que invade a soberania do território nacional com uma estratégia de guerra jurídica sem precedentes na história – a warfare, tão bem fundamentada pelo brilhante historiador e cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira em seu livro A Desordem Mundial. E que ataca subjetivamente o verdadeiro conceito da cidadania, abrindo espaço para a amoralidade que vem golpeando a sociedade brasileira.
Os quatro pilares sobre os quais se assenta o Estado – separação de poderes, legalidade, soberania e cidadania - estão seriamente abalados neste Brasil enfraquecido, enfermo, desfigurado, que vai se tornando o campeão mundial da fabricação de Frankensteins. Eles proliferam na escalada de violência em nossas ruas, nas nossas prisões desumanas, na falta de solidariedade, no absoluto descaso para com nossos rituais de despedida, de celebrações da vida e da morte.
Em sua agonia, o Brasil se retroalimenta cruelmente do vinagre que vai envenenando sua vocação de grande civilização dos trópicos. Precisamos curá-lo, se quisermos recuperar a crença de que, ao contrário do Velho Mundo em declínio das civilizações que sempre nos dominaram, somos o Novo Mundo que tem nas mãos as chaves de um futuro menos sombrio para as próximas gerações.